“Um Limite entre Nós”
Eu fiz questão de cronometrar: na primeira cena do filme “Um Limite entre Nós”, dois amigos de décadas voltam do trabalho conversando sobre a função que exercem, a de catadores de lixo, isso na década de 50, nos Estados Unidos. Já no quintal de casa, bebendo gim na garrafa, eles demonstram total insatisfação porque tal tarefa é sempre entregue aos negros, enquanto aos brancos cabe a função de dirigir os caminhões de lixo. Foram exatos 17 minutos de diálogo, com textos longos e divagações carregadas de indignação com a vida e com o preconceito enraizado na sociedade. Daí, aparece mais um personagem, e o diálogo continua… Ao todo, foram mais de 25 minutos de conversa árdua. Só nessa meia hora de filme, muitos espectadores já desanimariam, tamanha verborragia implantada – o que continuaria em duas horas e 20 minutos de produção. É o nítido reflexo de um longa que exala o cheiro do tablado, pois é baseado na peça “Fences” (1983), de August Wilson, adaptada ao cinema pelas mãos do diretor Denzel Washington, que produz e protagoniza o filme.
Mas a produção é muito mais do que essa comparação deselegante entre teatro e cinema. Indicado em quatro categorias do Oscar 2017 – incluindo melhor filme, roteiro adaptado, ator e atriz coadjuvante, categoria pela qual Viola Davis levou a merecida estatueta –, o filme conta a história de Troy (Washington), um ex-presidiário e ex-jogador de beisebol cuja vida é carregada de delimitações, de segregações, de “cercas”, como o próprio nome do filme em inglês indica. Troy tem 53 anos e mora com a esposa, Rose (Davis), e com o filho mais novo, Cory (Jovan Adepo). Ele sente um profundo rancor por não ter conseguido se tornar jogador profissional do esporte que tanto ama devido à cor de sua pele e, por causa disso, ele não quer que o filho siga como atleta de futebol americano, alegando que ele não terá chances por ser negro. Isso faz com que o jovem bata de frente com o pai, já que um recrutador está prestes a ser enviado para observá-lo em alguns jogos. A mãe interfere, mas de nada adianta, só faz aumentar a tensão e exaltar o fato de que essas barreiras erguidas para proteger acabam também isolando.
Nessa mistura hábil de drama racial e doméstico, os conflitos apresentados têm muito a ver com aquela visão ultrapassada e machista de respeito imposto pelo homem, o chefe da casa, a quem todos devem servir, respeitar e chamar de senhor. Se, no início do filme, você tinha até uma simpatia pelo protagonista, por ele ser espirituoso, gente boa e demonstrar romantismo e amor pela mulher por meio de beijos e declarações, aos poucos ele vai revelando sua maneira distorcida, machista e malsucedida de encarar a vida. Ou seja, Denzel Washington faz um grande trabalho ao, inicialmente, seduzir o espectador para, aos poucos, ganhar sua antipatia. E isso é maravilhoso. Uma desconstrução necessária para que possamos entender o real objetivo do filme.
Em certo momento, uma frase é dita: “É com os erros que se aprende o certo”. Nessa metáfora da vida, de que adianta ser o todo-poderoso dentro de casa se o maioral se evapora em conceitos não pregados e em valores não difundidos, que podem abrir feridas que nunca poderão ser cicatrizadas? O protagonista erra demais: com a mulher, com os filhos, com o irmão, com a própria vida ao sempre desafiar a morte. Ele escancara seu modo de vida, a forma de seguir seus passos, de impor suas vontades e ideias, mas não consegue enxergar seus próprios erros. Dentro da desconstrução do personagem, nessa bela obra que saiu do teatro para ir para as telonas – com monólogos e diálogos, por demais precisos, desnecessários ou em excesso –, o protagonista se cerca, se isola, e é o espectador que vai visualizar essa lição. E também enxergará um show de interpretação.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Portal UAI.